Diante da indisponibilidade de sedativos e bloqueadores neuromusculares no mercado, equipes de saúde têm se desdobrado para manter pacientes graves de Covid-19 intubados em condições adequadas. A saída, em muitos casos, tem sido substituir estes medicamentos - mais potentes e modernos - por outros que não garantem o mesmo desempenho, o tem tornado o ambiente das UTIs ainda mais difícil do que costuma ser.
Conforme o relato de médicos que atuam em hospitais públicos e privados de Bauru e que preferiram se manter em anonimato, com frequência, pacientes acabam voltando à consciência durante o período em que ainda estão em tratamento com o tubo orotraqueal, o que gera ainda maior sofrimento para eles, já bastante fragilizados, e também para os profissionais que os atendem.
E, mais do que isso, conforme o JC apurou, esta deficiência da sedação também pode comprometer o tratamento do doente e até mesmo sua sobrevida. Em Lençóis Paulista, por exemplo, conforme o JC divulgou, duas pessoas morreram em 28 de março por falta de bloqueador neuromuscular, fármaco que, entre outras funções, evita que o paciente tente respirar fora de sincronia com o equipamento ventilatório.
CONTENÇÃO
Em algumas situações, conforme descreve um médico intensivista de Bauru, sem o uso de sedativos mais potentes, o doente pode despertar e, por impulso, chega a levar a mão à boca para retirar o tubo, precisando ser contido (amarrado ao leito) até que uma nova dose de anestésicos possa ser aplicada e fazer efeito. "Porém, como não temos à disposição esta medicação que promove uma sedação mais profunda, esse processo pode demorar", revela.
Diante da situação dramática, o governador João Doria informou, em abril, que o Estado tem recebido uma quantidade inexpressiva de insumos, desde que o Ministério da Saúde 'confiscou' parte da produção das empresas brasileiras que fabricam os medicamentos que compõem o 'kit intubação' (leia mais abaixo).
IMPACTOS
O médico intensivista ouvido pelo JC descreve que o paciente grave de Covid-19 demanda um tratamento complexo, com necessidade de estar "bem sedado e, muitas vezes, com bloqueador neuromuscular" durante o período de ventilação mecânica, que dura, em média, de 10 a 12 dias. Porém, diante da escassez dos insumos mais indicados, as equipes têm utilizado outras opções, dependendo do que os fornecedores conseguem entregar.
"Um dia chega um tipo de medicação e a gente usa. Depois de alguns dias, chega outra e a gente vai trocando. É uma adaptação constante e, nestes ajustes, mesmo com todo cuidado, pode acontecer de o paciente acordar. E claro que tudo isso impacta no tratamento. Muitos hospitais têm tido dificuldade para sedar o doente profundamente, algo crucial especialmente no início do tratamento", avalia.
Um médico infectologista de Bauru, também ouvido pela reportagem, acrescenta que o despertar de alguns pacientes também pode estar associado à tolerância que eles adquiriram ao longo da vida a alguns sedativos de classes mais antigas, que voltaram a ser utilizados agora para intubação. "É uma situação péssima e, para os profissionais de saúde, um desgaste psicológico enorme. As pessoas que ainda não entenderam a gravidade desta pandemia precisam saber que há muito sofrimento envolvido e que elas precisam ter mais responsabilidade sobre a necessidade de manter o distanciamento social", completa.
Os médicos ouvidos pelo JC pontuam que a falta de insumos do 'kit intubação' é uma realidade nos hospitais das redes pública e privada, já que os fornecedores são os mesmos. A dificuldade de abastecimento decorre do consumo elevado gerado pela alta de internações, associado à escassez de matéria-prima - muitas vezes importada - para fabricação destes medicamentos.
Em ofício enviado pela Secretaria de Estado da Saúde ao Ministério da Saúde, o secretário Jean Gorinchteyn afirma que, há semanas, vem formalizando "reiteradamente" à pasta federal solicitações para a adoção de "medidas expressas e urgentes" para a recomposição dos estoques em São Paulo. Diz que já enviou nove ofícios com a mesma finalidade, "sem retorno".
Afirma, ainda, que o Ministério da Saúde "furta-se a esclarecer qual critério adotado para definir a distribuição dos milhões de unidades farmacêuticas requisitadas, face ao quantitativo ínfimo enviado ao Estado de São Paulo". Procurada, a assessoria de comunicação do ministério não se posicionou até o fechamento desta edição.
A Defensoria Pública de São Paulo enviou ao Departamento Regional de Saúde (DRS-6) uma recomendação para que as unidades de saúde da região se atentem à adequada atualização semanal do estoque de medicamentos e oxigênio hospitalar no sistema MedCovid e para que faça a gestão dos medicamentos entre os 68 municípios, de modo a suprir demandas com a utilização de estoques de cidades vizinhas, de maneira excepcional, visando evitar interrupções no tratamento de pacientes.
No documento, os defensores Mario Augusto Carvalho de Figueiredo, Talitha D'Aquino Tavano Carvalho e Davi Quintanilha Failde de Azevedo mencionam as duas mortes de Lençóis Paulista. Destacam, ainda, informações repassadas pelo DRS-6, de que não há um compartilhamento eficiente do estoque de medicamentos para o kit intubação entre as unidades de saúde da região e que o sistema MedCovid não vem sendo alimentado de forma satisfatória por todas elas.
Assim, a Defensoria recomendou que o DRS-6 planeje a gestão dos medicamentos necessários para o procedimento de intubação. Pediu para que as unidades de saúde sejam notificadas e orientadas a se atentarem à adequada solicitação de medicamentos no sistema MedCovid, providenciando a atualização do estoque de forma periódica para evitar desabastecimentos futuros.
Recomendou, ainda, que as providências sejam tomadas no prazo de 48 horas, remetendo-se, inclusive, cópia da recomendação a todas as unidades de saúde pertencentes ao DRS-6.