No peito, o amor pela profissão. No rosto, os sinais de cansaço começam a aparecer. Mesmo em meio à luta diária contra o novo coronavírus, a enfermeira assistencial do Hospital Estadual de Bauru (HEB) e chefe da enfermagem no setor de Covid-19 de um hospital particular da cidade, Karina Nakamura Gonçalves, de 34 anos, dedicou parte do seu pouco tempo de folga para atender à reportagem. Na conversa, Karina afirma que passou a conviver ainda mais com a dicotomia vidas e perdas.
Para superar esta fase, a enfermeira, que nasceu em São Paulo, mas vive em Bauru desde 2005, quando começou a graduação junto ao Unisagrado, conta com o apoio do marido, o médico anestesista Leonardo Henrique Lucas de Lima e Silva, de 46 anos. O profissional já esteve na linha de frente da Covid-19.
Filha da tosadora Irene Miyoko Nakamura, de 60, bem como do paisagista André Luís Gonçalves, de 58, Karina tem apenas um irmão, o empresário Rodrigo Zanardi Gonçalves, de 36. Sem filhos, a profissional é só amor pelos enteados Victor e Gabriel, pelos sobrinhos Arthur e Heitor e pela golden retriever Pandora.
Abaixo, ela fala sobre a sua vida pessoal e profissional, áreas que se mesclaram ainda mais ao longo desta pandemia. Confira alguns trechos da entrevista:
JC - O que a levou a fazer Enfermagem?
Karina - Na adolescência, eu fiquei algumas férias cuidando da minha batian (avó) enquanto ela esteve doente e passou por várias internações. Creio que este fator tenha sido determinante na minha escolha.
JC - Você trabalha na linha de frente da Covid-19 em ambos os hospitais?
Karina - No Estadual, eu não estou na linha de frente da Covid-19, porque trabalho no Centro Cirúrgico, mas, eventualmente, auxilio estes setores. Já no hospital particular, assumi a área de isolamento desde o início da pandemia. Coordeno, portanto, uma equipe de 70 pessoas que atende aos pacientes clínicos e da UTI.
JC - Qual é o perfil dos pacientes graves com Covid-19?
Karina - Estes pacientes são completamente diferentes daqueles da UTI geral, que abriga várias comorbidades, algumas graves e outras nem tanto. No caso dos diagnosticados com Covid-19, eles apresentam tão somente problemas respiratórios, já chegam em sofrimento e evoluem muito rápido para a piora. Por isso, nós tivemos de reaprender a trabalhar.
JC - O que mudou nesta segunda onda?
Karina - Antes, a maioria dos pacientes estava internada na enfermaria e havia poucos deles na UTI. No final de 2020, o cenário se inverteu. Inclusive, nós passamos um final de ano peculiar, porque não tivemos Natal e Ano Novo. O que nos salvou foram as famílias destas pessoas, que enviaram presentes em forma de agradecimento, motivando toda a equipe a seguir em frente.
JC - Este agravamento a assusta?
Karina - Com certeza, afinal, 95% dos nossos pacientes com Covid-19 estão na UTI. Nós passamos a enfrentar uma batalha por dia para manter a qualidade da assistência, independentemente do aumento da demanda. Por outro lado, hoje, estamos muito mais fortalecidos em relação ao conhecimento do que na época em que tudo começou.
JC - Você ou alguém da sua família já pegou a doença?
Karina - Eu ainda não peguei, mas um tio meu, que vive em Dracena, ficou 23 dias internado, sendo 20 na UTI. Como ele tinha todo o perfil para evoluir para a forma mais grave, pedi para a minha família trazê-lo ao hospital particular onde trabalho para que não se sentisse sozinho. Os pacientes entram ali sem saber se verão os entes queridos novamente, fato que os deprime ainda mais. Por isso, há momentos em que nós conseguimos liberar uma visita ou outra, mas nem sempre, pois depende da gravidade da doença e da sua transmissibilidade. No final das contas, dei alta para o meu tio faz pouco tempo e creio que, se ele não viesse até mim, não estaria entre nós hoje.
JC - O que faz nas horas vagas?
Karina - Eu costumo descansar, pois a minha jornada de 28 horas seguidas em ambos os hospitais, muitas vezes, sobe para 32. Me entreguei de corpo e alma. Não dá para deixar um paciente prestes a ser intubado para trás só porque deu o meu horário.
JC - Você convive com vidas e perdas. Como faz para superar esta parte negativa?
Karina - Eu me apoio no meu marido, que é médico e já esteve na linha de frente da Covid-19, intubando os pacientes, inclusive. Ele entende a minha rotina e também precisou abdicar de muita coisa.
JC - O que os pacientes prestes a ser intubados costumam dizer?
Karina - No atendimento emergencial de outras doenças, os pacientes já chegam desestabilizados e precisam ser intubados rapidamente. No caso da Covid-19, nós acompanhamos a piora e, com exames clínicos, conseguimos prever o momento em que eles deverão se submeter à intubação. Por um lado, é bom, porque dá para antecipar uma intercorrência, mas, por outro, temos de abordar as pessoas à beira leito e comunicá-las sobre a necessidade do procedimento. A maioria delas chora muito e pede para se despedir da família. Algumas recusam e trabalhamos na sua aceitação, sempre dentro do limite do livre arbítrio.
JC - Como a equipe consegue convencê-las?
Karina - Nós acionamos a família para que ela tome a decisão pelos pacientes, afinal, não podemos perder uma vida sabendo que existe a chance de salvá-la. A intubação, na verdade, é um recomeço, porque evita o sofrimento provocado pela angústia respiratória. Antigamente, havia muitos idosos precisando do procedimento, mas, hoje, percebemos o aumento do número de casos envolvendo adultos entre 29 e 35 anos, alguns deles sem qualquer comorbidade.
JC - Por fim, o que você aprendeu com o atual cenário?
Karina - Estar ao lado de alguém desesperado para sobreviver é o maior aprendizado de humanização que qualquer pessoa pode vivenciar.