As filas em busca de alimento de baixo custo aumentaram em lugares como o Bom Prato. Nos bairros periféricos da cidade, grupos ainda maiores se formam quando voluntários chegam para distribuir kits com gêneros alimentícios ou cestas básicas.
Esta realidade diária escancara a grave condição de vulnerabilidade socioeconômica de parte relevante da população de Bauru, agravada durante a pandemia, e que se assemelha a cenários típicos de guerra. "A guerra é um período em que há falta de tudo, mas, hoje, nós estamos em uma situação pior do que os tempos de guerra", analisa a professora de história e sociologia da ITE, Aurora Cannone, salientando que, nestas disputas bélicas históricas entre países, havia, ao menos, uma logística preparada para garantir o mínimo às famílias.
Para ela, a falta de entendimento entre governo estadual e federal foi um dos entraves para que o necessário socorro chegasse a estas pessoas. Porém, com a retirada do auxílio emergencial neste início de ano, a situação chegou ao limite, em um contexto de perda de renda em razão do desemprego e insegurança alimentar acentuada pela queda de doações.
"Diante desta situação tão crítica, é um absurdo esta parcela da população não poder contar com o poder público. A sociedade, ainda que de forma organizada, não dá conta de atender tanta gente por tanto tempo. O Brasil é o país que mais arrecada impostos no mundo e o que menos ofereceu aos seus cidadãos", acrescenta.
DESNUTRIÇÃO
Assistente social Renata Rocha Anjos Garcia, diretora da Seccional Bauru do Conselho Regional de Serviço Social, revela que, diante de tamanha desassistência, o fantasma da desnutrição voltou a assombrar estas populações. "Antes, as famílias não tinham o 'privilégio' de escolher o que queriam comer, mas ainda tinham o que comer. Hoje, estamos nos deparando com o cenário de famílias que passaram a ter de escolher quem dos seus integrantes vai comer, porque não tem mais comida para todo mundo".
Coordenadora do grupo Esquadrão do Bem, Maria Inês Faneco, que auxilia famílias vulneráveis com distribuição de alimentos em Bauru, é enfática. "Leite, na favela, é ouro. Ovo é filé mignon. As pessoas ficam desesperadas, porque é a única coisa que vão conseguir colocar no prato", afirma.
Além da falta desta retaguarda do poder público, estas populações são empurradas e mantidas em condição de miséria pela maior dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, mesmo que tenham plenas condições de vender sua mão de obra, conforme explica Renata Garcia.
"Não há emprego a todos. E as políticas sociais têm funcionado em uma lógica de detecção dos mais miseráveis para receber ajuda. Assim, cada vez mais, estas ações caminham para reafirmar as pobrezas e defender, lamentavelmente, uma ótica meritocrática, em uma sociedade que não é contemplada pela lógica de mobilidade social", avalia, salientando que, sem a garantia de atendimento de necessidades básicas, o resultado é uma sociedade caótica e potencialmente mais violenta.
A diminuição das doações por parte do poder público, o fim do auxílio emergencial e o número crescente de famílias vulneráveis fez com que os pedidos por cestas básicas junto aos grupos de voluntários de Bauru triplicassem em janeiro. De acordo com Maria Inês Faneco, coordenadora do grupo Esquadrão do Bem, muitas destas pessoas são as que não conseguiram retirar cestas básicas nos Cras de Bauru.
"Há um ano, quando chegávamos para fazer as entregas, tinham 30 famílias na fila. Agora tem 100. Em janeiro, tivemos que deixar de atender algumas famílias, porque não tínhamos alimento em quantidade suficiente. Era algo que não acontecia há muitos anos", comenta.
Motivado pelo ineditismo do momento crítico trazido pela pandemia, o pastor Ricardo Alexandre Pereira, presidente da Associação de Moradores da Pousada da Esperança, decidiu fazer, em janeiro, um cadastro com cerca de 500 residentes em situação mais grave. Depois, entregou ofícios para pedir cestas em supermercados e, de um deles, recebeu a doação de 84.
"Também compramos mais dez cestas, mas bastante gente ainda está passando dificuldade. Tem pessoa que precisa escolher entre o almoço e a janta, não consegue emprego ou está trabalhando de forma precária, fazendo bicos e trabalhando por um terço do valor da diária", diz.
Para as famílias vulneráveis de Bauru, ter apenas um item alimentício no prato já é sinônimo de alívio. Mas, como conta Patrícia Silva dos Santos, 26 anos, mãe de quatro crianças, às vezes, a falta de opções para os filhos e de esperança em dias melhores "é de partir o coração". Durante duas semanas em janeiro, toda a família, incluindo o marido que ficou desempregado no início da pandemia, almoçou a jantou exclusivamente arroz.
"No ano passado, o auxílio emergencial ajudou um pouco, mas, neste ano, para comprar feijão e ovo, meu marido precisou pedir dinheiro emprestado. Não conseguimos mais doação de cesta básica desde janeiro", lamenta.
No armário da cozinha, os únicos itens que sobram são açúcar e sal, situação semelhante à vivida por Erica Andrade Leite, 29 anos, que também tem quatro filhos pequenos e é casada com um pedreiro que, por meio de bicos, ganha em torno de R$ 500,00 mensais. "Como, até agora, não consegui nenhuma cesta, a gente tem comido arroz, feijão e ovo, mas nem sempre tem feijão, porque está caro. E é raro conseguir comer carne. A situação está bem difícil", completa.
A Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Ceagesp) de Bauru tem contribuído para o combate à fome na cidade, por meio de distribuição de alimentos para famílias e entidades assistenciais todos os dias. De acordo com a gerente da unidade, Cezira Viotto, em janeiro deste ano, foram doados 1,8 mil quilos por dia, totalizando aproximadamente 54 toneladas entregues a pessoas físicas e instituições.
Ainda de acordo com ela, em dezembro, foram doadas 60 toneladas de alimentos e, em maio, período em que as atividades comerciais estavam paralisadas no município, o patamar foi de 18 mil toneladas. “É preciso fazer um cadastro prévio, porque não conseguimos atender toda a população. Distribuímos alimentos que não possuem valor comercial, mas que ainda estão próprios para consumo, doados por nossos permissionários”, acrescenta.