Bauru é conhecida por ser polo universitário, 'casa' de cerca de 30 mil estudantes de ensino superior, que historicamente fazem parte do cenário urbano do município. Fácil identificá-los em pontos de ônibus, dentro e ao redor das universidades ou nos bares. Mas, com a pandemia, esta realidade mudou.
O fato de estes jovens terem praticamente "desaparecido" dos locais onde tradicionalmente circulavam revela uma dificuldade enfrentada por parte deles. Sem perspectiva de retomada das aulas integralmente presenciais e com despesas nem sempre fáceis de administrar, muitos decidiram deixar Bauru e voltar para suas cidades de origem, o que levou a um movimento intenso de extinção de repúblicas universitárias na cidade.
Somente a Liga das Repúblicas de Bauru - que pode servir como termômetro para dar dimensão da proporção deste fenômeno - registrou, do início da pandemia até agora, a dissolução de 17 de suas 50 repúblicas associadas, o correspondente a mais de 30% do total. Também se tornaram comuns fusões entre duas ou mais repúblicas, que registraram evasão de parte dos moradores e optaram pela união como forma de sobrevivência.
Presidente da liga, a estudante de administração da Unisagrado Laís Alexandre da Silva, 25 anos, explica que o encerramento de repúblicas em Bauru tem múltiplos fatores, todos diretamente relacionados à crise pandêmica. Um deles foi a falta de perspectiva, durante um longo período, para retorno das aulas presenciais - somente na última quarta-feira (7), o governo do Estado anunciou a retomada das atividades do ensino superior, a partir de 2 de agosto.
Laís conta que, inicialmente, os universitários ficaram em compasso de espera, com alguma esperança de que a pandemia pudesse ser contornada em poucos meses. Mas, com a crise se alongando e o ensino remoto já em curso, muitos optaram por voltar a viver na casa dos pais, em suas cidades de origem.
PERDA DE RENDA
Acrescente-se a isso o aumento dos níveis de desemprego, com a consequente perda de renda dos jovens, já que muitos trabalhavam em estabelecimentos da cidade. O problema afetou também os pais de vários deles. "Muitos alunos, por exemplo, trabalhavam em barzinhos, como bartender em eventos. Com a pandemia, eles perderam a renda que ajudava a complementar o que recebiam da família para custearem as despesas. Assim, a permanência deles na cidade foi ficando inviável", descreve Laís, moradora da República Clausura, no Jardim Panorama, que também perdeu uma das residentes justamente em razão do desemprego do pai.
Outro fator complicador foi a impossibilidade de realizar eventos, fontes tradicionais de renda para muitas repúblicas, inclusive para o pagamento de despesas da casa. Para piorar, o aluguel dos imóveis - calculado com base no Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), que, em fevereiro de 2021, acumulava alta de 28,94% em 12 meses - ficou mais caro neste ano.
De acordo com estudantes ouvidos pela reportagem, diante da crise sanitária, a maioria dos proprietários negociou descontos por alguns meses, mas, ao fim deste período, aplicou o reajuste, o que também contribuiu para expulsar da cidade aqueles que possuíam menos renda. "Alguns ainda insistiram, até porque, para devolver a casa, há um custo com pintura, reforma. Mas, no fim, acabaram ficando mesmo só aqueles que conseguiram manter emprego na cidade - muitos, por exemplo, começaram a trabalhar em empresas de recuperação de crédito - ou quem estava fazendo estágio", comenta Laís.
As moradias estudantis de Bauru também tiveram a rotina alterada durante a pandemia, como é o caso do Conjunto Residencial da USP (Crusp), que ficou por vários meses praticamente vazio, durante o período mais rígido de restrições, adotados no início da crise sanitária no Brasil.
Conforme conta a estudante de fonoaudiologia Jéssica Brito, 22 anos, representante do Crusp, a rotina está sendo retomada aos poucos, com o retorno, a partir de janeiro deste ano, de parte das atividades de forma presencial, como aulas de laboratório e estágios. "Durante o ano em que ficamos parados, de 60 alunos, apenas dois, estrangeiros, permaneceram no alojamento. Agora, com esta retomada, houve uma readequação: em vez de três alunos por quarto, agora só podem ficar dois", diz.
Com base em critérios socioeconômicos, a USP oferece moradia estudantil gratuita a seus alunos, com benefícios como refeições a R$ 2,00.
Mesmo com a rotina virada do avesso, muitos estudantes universitários não desistiram de permanecer em Bauru, quase sempre por manterem vínculos como estágio ou emprego na cidade. Enquanto assistiam repúblicas sendo esvaziadas pela saída de residentes, estes jovens passaram a buscar soluções para arcar com o aumento das despesas, como a venda de rifas, doces e até mesmo o pedido de ajuda aos veteranos, o que reforça o laço afetivo permanente que universitários constroem dentro destas casas compartilhadas.
Estudante de ciências contábeis na Unisagrado, Lara Bertoncin de Moura, 17 anos, conta que alunos de várias repúblicas de Bauru passaram a vender produtos para pagar as despesas. Suas parceiras da República Odara, por exemplo, comercializam doces, como trufas e tortas holandesas, em uma ação divulgada com a ajuda de amigos de dentro e de fora da universidade.
"As repúblicas têm ajudado umas às outras e também vendemos nas ruas e no nosso ambiente de trabalho ou estágio. Assim, vamos contornando as dificuldades, porque a gente trabalha, mas não tem uma renda muito alta. Todo mundo 'se vira nos 30'", comenta ela, que é vendedora de uma loja de roupas em um shopping da cidade. Algumas repúblicas, como a Odara, também passaram a admitir como residentes pessoas alheias ao ambiente universitário, em sua maioria trabalhadores da cidade com idades entre 20 e 30 anos, conferindo a estas moradias uma configuração diferente da tradicional. "Hoje, dos oito moradores da casa, quatro não são estudantes e trabalham em empresa de recuperação de crédito ou lanchonete", conta Lara.
'AGREGADOS'
De acordo com ela, como há uma mistura entre moradores com foco e momento de vida completamente diferentes, a rotatividade acaba sendo grande, o que gera a necessidade permanente de ir em busca de novos interessados. Esta abertura a chamados "agregados" também foi uma estratégia da República Aloha, que tinha 15 residentes antes da pandemia e, agora, conta com nove, sendo que apenas cinco são universitários.
Segundo o estudante de fonoaudiologia da USP, João Caetano Schmidt Máximo, 21 anos, esta foi a saída encontrada para viabilizar o pagamento das contas, que chegavam a R$ 8 mil mensais, incluindo aluguel e salário da empregada doméstica. A funcionária acabou sendo dispensada para reduzir custos e, em junho deste ano, o grupo também decidiu se mudar para um imóvel menor, no Jardim Aeroporto.
"Além disso, tínhamos uma poupança, com um valor considerável de contribuições feitas mensalmente pelos moradores. Mas essa reserva foi acabando e, então, como último recurso, pedimos ajuda aos ex-moradores da república, que já tem sete anos. São hoje profissionais já formados, que nos ajudam sempre que preciso", conta.
O início da pandemia decretou o fim de muitas repúblicas em Bauru, como é o caso da República das Maldivas, que ficava localizada na Vila Universitária. Antes da chegada da Covid-19, o imóvel abrigava dez pessoas e, um ano depois, quase todas já tinham retornado para suas cidades de origem.
"Em 2020, ainda conseguimos desconto no aluguel, mas, em 2021, foi reajustado para R$ 4 mil, no meio da pandemia, quando alguns moradores já tinham saído. Ficou inviável. E ninguém tinha certeza se terminaria o curso antes da volta das aulas presenciais, se compensaria procurar outra casa, fazer um novo contrato. Em março deste ano, então, decidimos entregar o imóvel", relata a ex-moradora Maria Eduarda Delfino, 23 anos, que se formou em rádio e TV pela Unesp no início deste ano e, hoje, mora em São Paulo, junto com a mãe.
Estudante de engenharia elétrica na Unesp, Matheus Correia de Carvalho, 21 anos, também retornou para a Capital, sua cidade de origem, em meados do ano passado. Ele era morador da República Sentinela, que contava com sete residentes antes da pandemia e foi dissolvida quando restaram os últimos três.
"O primeiro morador saiu porque a mãe perdeu o emprego. Ainda conseguimos um desconto no aluguel por três meses, mas todo mundo acabou indo temporariamente para a casa dos pais. Sem a previsão de volta às aulas, optamos por entregar o imóvel", conta.