Viver em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, com todas as suas implicações sociais e econômicas, têm sido um enorme desafio a todos. O medo do contágio, a perda de entes queridos, a rotina repleta de restrições e as perspectivas incertas de retomar a vida que se tinha antes impactam diretamente na saúde mental dos indivíduos, o que tem refletido em um grande número de conflitos em Bauru e região.
As chamadas "desinteligências", aliás, lideram o ranking de ocorrências atendidas pelo 4.º Batalhão da Polícia Militar do Interior (4.º BPM-I), que abrange 19 municípios. Segundo levantamento elaborado pela corporação, no ano de 2020, foram registrados 17.747 ocorrências deste tipo, situações em que a corporação foi acionada devido a discussões e desentendimentos entre pessoas. A média é de 48 registros por dia.
"Nota-se que as pessoas estão mais tensas, preocupadas com o futuro, e, talvez, esses fatores tenham contribuído para este resultado, uma vez que estão passando mais tempo juntas, dentro de casa, o que aumenta a probabilidade de conflitos, desentendimentos, discussões e outros fatores que levam à animosidade", pontua o comandante do 4.º BPM-I, Fabiano Serpa.
De acordo com o capitão Lucas Freitas, chefe da Seção de Operação do 4.º Batalhão, na maioria das vezes, os casos envolvem atritos entre vizinhos ou familiares, alguns deles precedidos por incômodo relativo a barulho ou som alto, que se configura como perturbação do sossego público (leia mais abaixo).
"Também é comum haver discussões porque o vizinho deixa lixo ou qualquer outra sujeira na calçada do outro", exemplifica. Ele acrescenta, ainda, que o clima de animosidade também atingiu o ambiente familiar, pelo maior tempo de convivência entre os moradores ou por fatores como a perda de emprego, que pode resultar em conflitos de ordem financeira.
PAPEL MEDIADOR
"Hoje, a sociedade está psicologicamente doente. E muitos destes problemas 'deságuam' na polícia. Então, nos casos de desinteligência, o policial acaba assumindo um papel de mediador, conciliador", observa, salientando que, quando há configuração de crimes, como agressão, violência doméstica e abuso sexual infantil - que também registraram aumento no País -, as partes envolvidas são levadas à delegacia.
O capitão Freitas relata que se tornaram frequentes, ainda, discussões em unidades de saúde, o que reforça o cenário de intolerância e, não raro, de desespero em meio a todo o caos provocado pela pandemia. No dia 17 de março, matéria publicada pelo JC revelou que não apenas atritos, mas até agressões a profissionais de saúde da rede pública se tornaram recorrentes neste último ano.
No dia anterior, uma enfermeira havia sido empurrada e atingida no rosto pela acompanhante de um paciente, que também deu um soco no olho de uma técnica de enfermagem, na UPA da Vila Ipiranga. À reportagem, a técnica de enfermagem afirmou já ter sido agredida outras vezes e que, uma semana antes, uma médica também teria sido atacada em serviço.
As discussões, especialmente entre vizinhos, são precedidas, na maioria das vezes, por situações de perturbação do sossego público. O som alto dentro de casa ou no carro ou conversas em tom elevado no período da noite ou madrugada podem ser o estopim do descontrole de quem está perto e já irritado e cansado de lidar com todas as dificuldades trazidas pela pandemia.
E, não por coincidência, enquanto outras ocorrências, como furto e acidentes de trânsito diminuíram durante este período, os boletins de perturbação do sossego aumentaram em 66% na região, saltando de 10.097 registros em 2019 para 16.849 em 2020. Segundo o chefe da Seção de Operação do 4.º BPM-I, Lucas Freitas, a alta têm relação com o fato de as pessoas permanecerem por mais tempo dentro de casa e estarem mais irritadiças.
"Os números abrangem estas reclamações relacionadas a barulho em residência, mas também festas, aglomerações. Neste último caso, além do transtorno trazido pelo som alto, há uma preocupação sanitária. Então, é papel da Polícia Militar agir e dispersar os participantes destas confraternizações. Já quando se trata de uma problema residencial, o policial pede para que o vizinho abaixe o som, fale mais baixo, mas não cabe qualquer tipo de autuação", frisa o oficial.